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Entrevista ao RIMAS & BATIDAS

Escrito em 15 de dezembro de 2019

Entrevista ao RIMAS & BATIDAS

[TEXTO] Alexandre Ribeiro & Rui Miguel Abreu [FOTO] Patrícia Fitas

Quando nos sentámos com Allen Halloween na passada quinta-feira, uma das suas primeiras frases foi logo uma tão inesperada quanto bem-vinda revelação: “o Unplugueto sai dia 15 de Dezembro”. Apesar de ser um dos projectos mais esperados em Portugal desde que foi anunciado em 2016, não havia qualquer tipo de expectativa (nem notícia) sobre a data de lançamento. Tal como a sua música, um produto natural das suas vivências, gostos, pensamentos e imaginação, todos os prazos são consequência não-forçada de um qualquer alinhamento cósmico.

Foi, no entanto, outra obra que nos levou até ao Largo de Camões e que motivou a conversa com o rapper e produtor: Livre-arbítrio, o seu primeiro livro, que será editado pela Lua Eléctrica e apresentado esta sexta-feira na Galeria Zé dos Bois. Neste novo contexto, as letras de Projecto Mary Witch, A Árvore Kriminal, Híbrido e Unplugueto ganham uma renovada força poética e traçam uma narrativa, “a de um jovem africano em Lisboa”, através da escrita fotográfica de Halloween.

A trabalhar em bandas sonoras para teatro, a pensar em filmes (“daqui a 10 anos voltamos a falar”, promete-nos) e a lançar uma antologia poética: é assim que Allen, à beira de completar 40 anos de vida, se posiciona — um artista que se tornou peça indispensável para se contar a história da música portuguesa na década que está prestes a chegar ao fim.




Comecemos pelo livro, antes de falarmos do Unplugueto. É aquele tipo de coisa que, agora que foi anunciado e aconteceu, parece óbvia. Sempre soubemos que as tuas letras tinham espessura para aguentar algo deste género. Como é que a ideia apareceu?

Isso é daquelas coisas que eu acho que qualquer pessoa que escreve neste registo pensa um dia fazer. Mas eu entendi há uns tempos que não consigo fazer tudo sozinho [risos]. Então quando me apareceu este rapaz com esta ideia de fazer o livro, eu disse-lhe, “pá, sim, vamos avançar com isso”. O livro acaba por ser as letras que eu escrevi até hoje e, só analisando, é que reparas que é um registo da vida de um jovem africano em Lisboa. Como eu tive sempre essa coisa de escrever de uma forma pormenorizada e fazer fotografia daquilo que me rodeia, quando eu comecei a olhar para as letras desde o primeiro álbum até este último, fiquei com a ideia que aquilo é como se fosse… 

… um diário? 

Não é bem um diário… Acabei por perceber que fazia sentido, mas é uma coisa que tu terás que analisar a fundo, as letras, para ver a mudança daquela vida “ímpia” [risos] para os dias de hoje. 

Tu tinhas isso organizado de alguma maneira. Havia uma pasta no teu computador com as letras todas ou nunca tinhas feito esse trabalho?

Nunca tinha feito esse trabalho. Foi um trabalho fácil de fazer porque fui à net, onde os putos escrevem as letras, retirei e reescrevi porque eles inventam lá muito coisa para o meio [risos]. 

Dá um exemplo de um dos erros que as pessoas tenham cometido quando transcreveram as tuas letras.

Bem, vou-te dar um exemplo quase bizarro. Uma vez estávamos numa festa em minha casa, com os meus amigos todos, e aparece-me um deles a dizer que tinha vindo um puto de Coimbra, de comboio ou de boleia, não sei como é que ele veio. E eu vi que o puto não batia assim muito bem — depois apercebi-me que era um gajo que sofria de esquizofrenia ou algo do género. Diz-me que o pai dele era o Eduardo e vem-me com uma conversa [risos]… Há um som em que eu digo “na noite que tu ouvires o uivar dos cães da K, o cão que morde foi para casa”. Ou seja, estou a referir-me a mim. No dia que vires os meus amigos a “chorarem”, é porque eu morri. Para ele, o que eu dizia nesse som era, “na noite que ouvires o Eduardo…” Eu disse, “mano, isso não tem nada a ver”. E ele começa a ficar meio chateado e eu disse-lhe, “olha, estamos aqui na festa de um amigo meu, vais ter de bazar”. Eu vi que ele estava a entrar em parafuso [risos]. Foi das coisas mais estranhas…

Isso é uma das coisas extraordinárias que acontece com qualquer tipo de artista. A partir do momento em que a sua arte é publicada, o artista perde um bocado o controlo e as pessoas lêem na sua obra aquilo que quiserem. Às vezes até de uma forma bastante fantasiosa. Já deste por ti a achar que letras tuas foram levadas exactamente no sentido oposto daquilo que tu pretendias?

Acho que sim. Eu, de certa forma, também acho isso bonito. Tu escreves uma coisa com uma intenção e uma ideia e a pessoa pega e leva para outro lado. Eu, de certa forma, quando escrevo faço um bocado isso que é: baralhar a coisa para não ser tão clara. 

E permitir outras interpretações.

Ya, exactamente isso. 

Mas tu tens sempre uma moral que é fixa, para ti. 

Claro. Como é que hei-de explicar? Eu tenho sempre um sentido e uma ideia, mas gosto de brincar um bocado com a coisa para obrigar a pessoa a levar a coisa para outro lado. Acho que se fosse tudo básico não teria assim tanta graça. 

E olha, qual é a sensação de veres a tua obra arrumada daquela maneira, com as palavras impressas?

Não sei. Eu vi pouca coisa do livro até agora. Eu sou um homem que não cria grandes expectativas das coisas. É um livro [risos]. Durante os anos, não sei se tem a ver com a minha própria vida, eu nunca criei grandes expectativas das coisas. Imagina: eu vou lançar um álbum e vou fazer a apresentação num sítio. Eu normalmente só penso nisso quando chega a altura, entendes? Acho que tem muito a ver com a vida que eu tive. Não ter grandes expectativas nem esperar muito de uma coisa. Mesmo com amizades e pessoas. Uma pessoa quando falha comigo… Uma frase que eu escrevi uma vez dizia, “eu não estou desiludido porque eu nunca esperei nada”. Eu só ganho amor à coisa depois. É como ter um filho. As pessoas dizem que quando têm um filho nos braços a vida muda. Tu quando tens ali aquela criança nos braços é como se ainda não tivesses aquele grande amor por ela porque não a “conheces”. Com o tempo é que nasce aquela coisa estrondosa. Então o livro acho que será a mesma coisa. Por agora é um livro mas com o tempo [risos]…

Mas repara nisto: todos os teus trabalhos até agora têm saído em CD, um formato de suporte que existe há 30 anos. Os livros existem há 600 anos. Nós não sabemos o que é que vai ser o futuro dos CDs, se daqui a 20 ou 30 anos ainda vamos ter CDs em casa, mas sabemos que vão continuar a existir livros por muitos anos. E se calhar daqui a 100, 150 anos, quando alguém quiser saber como era a vida de um jovem em Lisboa no início do século XXI, o teu livro vai ser um documento. Tu sentes esse peso de responsabilidade? 

Visto dessa forma, sinto um certo orgulho de ter conseguido fazer isso, mas tenho cuidado com essas coisas da humildade e do orgulho. Eu sinto-me grato por ter tido oportunidade de fazer isso. É mais por aí. Sinto que tive a força suficiente para fazer isso. Não posso dizer que foi sorte, não poderei chamar sorte a isto. Posso dizer que me foi dada a benção de fazer isso. Acho que com o tempo ou os anos é que eu poderei olhar para trás e dizer, “ya, ‘tá ali alguma coisa”. É mais por aí.

Tanto quanto eu julgo saber, nunca houve uma antologia de poemas de um rapper em Portugal. Este será o primeiro. Será a primeira vez que o rap em Portugal gera uma obra impressa em papel. Já pensaste nisso?

Comecei a pensar agora [risos]. Tu ‘tás-me a dizer isso e alguém vai logo lá escrever que não, que já alguém fez isso antes…

Que eu saiba não, não há um livro do Sam The Kid, não há do Valete, não há do Chullage…

Eu vou-te dizer uma coisa, os escritores que me perdoem, mas acho que escrever música é um patamar acima da escrita, porque a música tu tens que escrevê-la em caixinha. E além disso tem que soar bem. Tens que escolher palavras que soem bem e que sejam “cantáveis”. 




Que não façam apenas sentido no papel, mas que façam sentido de outra maneira. Houve um grande debate quando o Bob Dylan ganhou o Prémio Nobel da Literatura sendo um cantor, esquecendo-se as pessoas que nós na escola, quando aprendemos português, começamos pelas cantigas de amigo, as cantigas de trovador, as cantigas de escárnio e maldizer, que eram formas trovadorescas lá na Idade Média de associar a palavra à música. Portanto, a palavra escrita e a música estão associadas, isso não nasceu com o Dylan. 

São irmãs, neste caso. A própria Bíblia. Há os salmos. Se calhar até estou a ser um bocado injusto ao dizer que está um patamar acima, mas acho que para quem já escreveu poemas e depois foi escrever música… a coisa é diferente. Eu vi muita gente que escrevia bem poemas e pensou, olhando para o “sumo”, que era fácil, “rap para mim é com uma perna às costas” [risos], mas quando tentou passar os poemas dele para música, entendeu que não é bem assim. As frases têm que ser “curtas e grossas”.

Há um som, o último do Unplugueto, chama-se “Assassino”. Imaginei isto na minha cabeça e passei para o papel. A música fala de um novato na polícia que, como qualquer um, criou o seu espaço e o seu respeito. Como é que ele arranjou o seu respeito? Procurou uma vítima. E a vítima que ele encontra é um ladrão de cobre. Ele mata-o e a partir daí ganha o seu respeito na polícia. Passar essa história para quatro ou seis estrofes… é um trabalho que acho que alguém que escreve para depois musicar entende como é que é difícil fazer a coisa. Mas com o tempo vai lá. 

E qual é o teu método de escrita? Tu escreves no papel, no computador, no telemóvel, na cabeça? Como é que a coisa funciona?

Escrevo muito na cabeça. Gosto de fazer apontamentos quando, por exemplo, me vem uma dica à cabeça. Aponto num sítio qualquer. Não tenho um método. O “Bandido Velho”… Eu estava em casa e passou um anúncio da Yves Saint Laurent, e aquilo tem um instrumental de um som chamado “Paris”, e logo ali veio-me a escrita da música em termos de melodia daquilo que cantas. A música estava a dar e eu [começa a cantar “ninguém ouve, ninguém ouve”]… às vezes faço isso quando quero que um som tenha um certo peso: eu escrevo a coisa na língua do nada. Imagina, está aqui a dar um beat de rap e e eu uso essa língua. Gravo e depois rescrevo isto em português. 

O Som e o Sentido… no teu caso o som nasce primeiro. O som, a melodia, o flow e só depois o sentido, as palavras e as histórias, não é?

Mas lá está: é como eu te disse, não existe um método. Depois existe é aquelas coisas que tu escreveste e dizes, “não, eu vou ter que dizer isto exactamente como escrevi, não vou mudar nada porque eu quero mesmo que saia assim”. Aí é que vem a tua técnica. Eu acho que o Tupac era um dos mestres. Existem pessoas que tentam fazer algo mas tu vês que está a sair forçado. Imagina um álbum inteiro de um rapper que está habituado a escrever textos e depois tenta cantar aquilo. Não é uma coisa que soe muito bem e qualquer pessoa que perceba minimamente de rap entende que aquilo… epá, este gajo escreveu um texto e tentou cantá-lo. O ideal será mesmo [ter] uma música e escreveres a seguir. Mas, por exemplo, no primeiro álbum ainda não tinha essa possibilidade. Não tinha um grande leque de beats, o Projecto Mary Witch é um álbum mais concentrado em termos de rima. É um álbum escrito. É uma técnica quase, sei lá, esquizofrénica que eu utilizava. Começo a bater, a fazer a minha bateria [tamborila com os dedos na têmpora], e estou a escrever por cima. Quando te aparece um beat, seja de que tipo for, a coisa encaixa. 

Quando tu olhaste para o tal PDF que te hão-de ter enviado com os teus poemas já todos paginados, qual é aquele que te diz, “aqui atingi mesmo um patamar alto”? Qual é aquele poema em que tu achas que a tua arte surge mais refinada, à falta de melhor termo?

É difícil. São como meus filhos. Porque repara, tu às vezes podes fazer um grande poema, mas depois às vezes há uma letra que até não está assim muito bem escrita, foi feita a “correr” num estúdio qualquer, mas que representa muito mais. Então quando tu ouves essa letra já te lembras, “olha, isto eu escrevi em tal sítio, para tal pessoa”. É por aí. É um jogo de coisas que é difícil tu dizeres, “este está melhor ou este bateu-me mais”. É difícil responder a essa pergunta. 

Vou meter a coisa de outra forma. Recebes um telefonema: “Olá, Allen, o meu nome é Manuel. Eu trabalho aqui num festival literário e gostávamos muito que te viesses cá apresentar. Vamos ter cá o poeta X e o escritor Y e gostávamos muito que viesses cá ler um poema teu”. E tu tens que escolher um para aquele âmbito mais literário em que as palavras pesam mais do que a música. Qual era o que tu irias escolher?

Podia escolher “Assassino”, “Na Porta do Bar” ou “Debaixo da Ponte” para esse tipo de “ambiente”. 

Mas o “Debaixo da Ponte” não é um tema com que tu te zangaste a dada altura?

Não, porquê?

Porque não o querias tocar ao vivo, não é? 

Tem muito a ver com os sítios onde eu toco. A maioria dos sítios onde a gente toca é club. É ambiente de noite, é pesado. Vou estar ali no meio da noite a tocar um som daqueles [risos]? É mais por aí. Numa sala intimista faria sentido, agora num ambiente esquizofrénico de discoteca às três da manhã ir tocar um som daqueles é um bocado fora. Depois existem outros temas mais ou menos calmos que encaixam melhor no alinhamento. 

Há bocado mencionavas o Tupac. Tiveste mestres que tu hoje digas “estes tipos ensinaram-me muito daquilo que eu hoje sei”. Ao nível da escrita, claro…

O Mano Brown dos Racionais. O próprio Kurt Cobain, embora a letra dele seja mais… a cena que eu apanho mais dele é em termos de composição de canção. Porque a letra em si não tem assim… como é que hei-de explicar?… não tem assim tanta profundidade em termos da coisa social, de fazer alguma coisa pelas pessoas. É um bocado mais egocêntrica, “eu ‘tou aqui triste”. Então apanho mais na parte de compor canções. A Bíblia também. Eu gosto por exemplo do Livro dos Provérbios, Eclesiastes. 

É um livro que tu estudas com regularidade?

Sim, sim. Ou seja, ali é que tu apanhas a fórmula de escrever pouco e dizer muito. E aquele muito que tu dizes a pessoa não apanha logo na altura. 

Tu lembras-te aqui há uns anos do Pedro Gomes da Filho Único te ter convidado para um evento no Chiado? Uma conversa com o B Fachada… Na altura ele dizia, “o Allen tem que vir porque, acredita, para mim ele é o gajo mais importante a trabalhar a língua portuguesa desde o Zeca Afonso”. Um statement grande e forte…

Obrigado, Pedro [risos]. 

Estes mestres portugueses com que tu foste sendo comparado, o Zeca Afonso, o José Mário Branco, foram pessoas que tu te deste ao cuidado de ir estudar depois de começares a ver estas referências ou nem por isso?

Para te dizer a verdade, já ouço sons do Zeca há muito tempo. A “Canção de Embalar”, por exemplo. São sons que eu já ouvia desde criança e eu ainda nem tinha essa coisa de entender propriamente música, ouvia mesmo pela melodia. E eu, de certa forma, não acho isso assim uma comparação muito estranha. Quando eu olho para esses gajos, Zeca Afonso e companhia, eles eram o equivalente aos pretos de hoje. Eram perseguidos pela polícia, eram os gajos perseguidos pelo sistema. Eu não acho que a coisa seja assim tão fora. Eles eram o que nós somos hoje na sociedade em que vivemos. 




Compreendes a associação?

Compreendo, e não é uma coisa forçada. Por acaso já me inspirei numa música do Zeca, na “Cobradores de Impostos”, mas foi a única que eu posso dizer que se inspirou nele. Compreendo que as pessoas façam essa comparação e a comparação não é ao calhas. Não é uma coisa que eu programei [risos]. São comparações que nasceram normalmente. 

E o Sérgio Godinho?

Para mim, o Sérgio é, provavelmente, o primeiro rapper português [risos]. Ele já canta naquele estilo meio rap há muito tempo. Lá está, o Sérgio era outro que, antes de compreender esta coisa que existe atrás da música que é o conteúdo, um dos que eu não via assim nada nele. Eu sempre gostei da coisa muito melódica, mas quando eu me “formo” como homem, que entendo o mundo que me rodeia, começo a compreender quem é e o que representa o Sérgio Godinho.

Há uma canção do Bruce Springsteen chamada “State Trooper” que deu origem a um filme independente feito pelo Sean Penn. Nunca foste abordado por alguém do cinema a dizer que “Um Dia de Um Dread de 16 anos” dava um grande filme?

Já me disseram isso. Eu sempre recusei porque a pessoa que me propunha não tinha os meios suficientes para fazer um vídeo ao mesmo nível da música. 

Mas não estamos a falar de um videoclipe para a tua música.

Uma curta-metragem. Eu sempre achei que a pessoa não tinha os meios para fazer isso. Ia ser uma coisa muito a correr, muito a despachar. Achei que não valeria a pena, mas já recebi esses convites. Por acaso o cinema é uma coisa que no futuro eu penso atacar [risos]. Já há algum tempo que eu venho engordando uma ideia para um filme, mas isso não é para agora. É para daqui a 10 anos [risos]. 

E o que é que se vai passar na ZDB na apresentação do teu livro?

O Nacho desafiou-me para ser uma coisa sem qualquer tipo de instrumentos. Palavra e microfone. É uma coisa que eu ainda estou a estudar porque não gosto de mudar as minhas apresentações só por causa de um evento. Não gosto de fazer isso, por isso estou a estudar bem o que vou ali fazer. Não quero fugir muito. 

Vais levar a MPC, não vais resistir…

Ou um guitarrista, mas ele diz que funcionaria bem só mesmo a letra. Não sei. Eu toquei algumas vezes acústico e quando chega lá para a oitava música começo a achar aquilo calmo demais [risos]. Então é por aí que eu às vezes torço assim um bocado o nariz.

Vamos falar do Unplugueto? Um disco de que estamos todos à espera há muito tempo. Para começar, o disco vai ter coisas que ainda não conhecemos? 

Sim. Mesmo outras que já conhecem foram regravadas outra vez. Hoje em dia, falando para a cena do hip hop, eu quase tenho medo de dizer aquilo que vou fazer. Acho que é uma das pragas que hoje existe no rap: há muita gente a copiar. Quando falei do Unplugueto, saíram logo uns dois ou três [parecidos] um mês depois [risos]. Mas eu acho que escondi mais ou menos a coisa que eu queria fazer. O Unplugueto vai sair com a gravação dos vídeos que fizemos na galeria, a Appleton Square. A gente gravou lá um concerto e o Unplugueto sairá com os vídeos disso. Qual será a melhor definição para o Unplugueto? É um acústico de rap, não é o acústico normal que as pessoas estão habituadas a ouvir. “Então mas se aquilo é um acústico, o que é que foi tocado aqui e o que é que não foi tocado?” É um acústico de rap, ou seja, a gente toca na MPC. Não precisamos de baterista, eu toco a bateria na MPC. Da música chamada tradicional tenho a guitarra, o sax do Rodrigo Amado. O resto é feito por nós. A ideia do Unplugueto é produzir um Unplugged normal de rock, que um rockeiro faz com a sua guitarra acústica, mas tudo pensado para um rapper. 

No fundo a tua MPC é a tua guitarra…

A minha guitarra acústica. Porque quando passa para eléctrica já vou para MPDs, computadores e por aí. O Unplugueto é um álbum feito nesse sentido. Acredito que a partir dali os Unpluggeds vão mudar. 

Partindo para o teu lado de produtor: és produtor porque nunca descobriste quem fizesse os beats em cima dos quais tu gostarias de rimar? Foste obrigado a produzir para ti próprio porque não havia mais ninguém?

Não. Eu acho que um artista para ser completo devia ser produtor. Eu, por exemplo, não sou muito puritano nessas coisas de produção. Eu posso ouvir um beat, meter só uma bateria e cantar em cima [risos]. Mas eu acho que em termos de pacote completo de um músico, acho que tu deves produzir a tua coisa. Não acho muito cool, agora vou ali a um estúdio, ele dá-me 10 beats, eu canto em três ou quatro e está feito. Não, eu tenho que estar envolvido naquilo. Mesmo beats pesados que me deram, eu alterei sempre ali coisas. Eu acho que para seres completo tens que produzir. Não é só ter um dedo. Bacalhau cozinha-se de muitas maneiras, tu às vezes queres passar a imagem para fora que também és produtor e falas em co-produção. Vais a ver e só adicionaste uma bateria [risos]. Não, eu acho que tu deves mesmo produzir a tua música para ser completo. E eu nunca quis ser produtor de ninguém. Houve muita gente a pedir-me beats durante esses anos todos e o que eu lhes disse acaba por ser a verdade: “mano, eu não vou ser teu produtor porque se eu fizer um ganda beat eu é que vou cantar nele”. Não vou pegar nos restos e dar-lhe. E tem outra coisa: eu não quero que ninguém soe igual a mim. Como é que eu te vou dar um beat meu? Para tu soares igual a mim? Não quero que te soes igual a mim. Eu tenho a minha cena. Até na minha forma de gravar tenho a minha cena e eu não quero que o outro soe igual a mim. 

Tens lá uma pasta no computador cheia de beats teus que nunca ninguém ouviu ou és daqueles que só produz quando tem aquela letra para gravar?

Não, há beats que ficam de parte. 




E um álbum instrumental? Nunca te passou pela cabeça? 

Eu fiz agora um álbum instrumental para o Teatro Mosca, em que fui lá a esse baú de beats [risos]…

Há uma banda sonora de uma peça feita com beats teus?

Ya, saiu há um mês e tal. E estou a preparar outro já. O Nuno Cardoso lá do Teatro Nacional São João, no Porto, pediu-me para fazer a banda sonora da peça Castro. Ele pediu-me para fazer isso e pediu-me uma coisa estranha, que eu cantasse os versos dessa peça em rap ou em instrumentais de rap. E é uma coisa que a gente está a cozinhar aí. Próximos tempos irás-me ver aí a dar uns saltos no teatro [risos]. 

Estás a ganhar ferramentas para fazer um filme.

Exactamente! Sempre me disseram que alguém para fazer filme tem que passar pelo teatro. E estou com esse gajo, que é um mestre, e vou ali ver o que é que dá para aprender. 

Tens o livro a sair agora, o Unplugueto no dia 15, isto tudo já a programar 2020. 

Para dizer a verdade, eu, como nunca tive manager, não programo as coisas [risos]. Eles sempre me disseram, “tens é que lançar álbum nos primeiros meses do ano para apanhares os festivais” [risos]. Eu, como nunca tive, a coisa sai normalmente. 

Mas não te tem corrido assim tão mal esta tua gestão de carreira, pois não?

Não porque eu nunca aceitei trabalhar directamente só com uma pessoa. Tu quando crias o teu nome, a coisa cai lá no teu Hotmail, não vais estar a oferecer a alguém. A mim não me convém porque a minha banca está montada. É o que eu costumo dizer às pessoas: arranja-me um concerto e levas a tua percentagem. 

E já houve momentos, nomeadamente no início da tua carreira…

Ali, por acaso, valia a pena. Também não sou aquele gajo anti-editoras. Para mim é business. Porque eu vou te dizer uma coisa que às vezes as pessoas não entendem: para mim ser verdadeiro está na parte de construíres a tua música. Eu aí não me misturo com ninguém. Até hoje, a única pessoa com quem eu cantei que não conhecia foi o Vinicius Terra. E foi porque eu percebi que íamos lá ao Brasil e depois no fim daquilo havia uma jam em que cada um mandava um som. E eu, “ya, na boa, também quero conhecer o Brasil”. E depois quando cheguei lá é que percebi que era mesmo um som com o Vinicius [risos]. Por acaso não me arrependi. Ele é um gajo fixe. [Também fazia com o] Mano Brown. Eu conheço o Mano Brown, embora não o conheça pessoalmente. Com ele fazia um som. Ou com o Fuse. Não o conhecia, mas conheço-o em termos musicais. Para mim ser real é isso… é como fazer amor: tu fazes com quem gostas, não vais fazer porque alguém te pagou. Quando chega à parte do business, ali não há que ser real. Vais ter que me pagar o máximo que eu acho que mereço. Eu nunca tive essa aversão à indústria. Eu acho que no princípio se calhar seria um bom business, hoje não. 

No início, se o hip hop português era um círculo, tu estavas aqui dentro, mas eu temos-te visto cada vez mais afastado. Como é que tu olhas para a cena? Esta década foi de profundas transformações na cena do hip hop em Portugal. Passámos de ser um nicho para ocuparmos quase o palco principal da cena musical portuguesa. 

Fazem mais ou menos sempre essa pergunta e eu às vezes não sei se a pessoa fica com a ideia que eu tenho alguma coisa contra as novas gerações. Eu acho que todas as pessoas são livres de fazer rap. O problema não é aí.  O problema é se tu devias fazer rap [risos].

Pela pouca idade que eu tenho, falo de pouca idade no sentido de ver o nascimento e a morte de movimentos culturais, eu entendo perfeitamente para onde o rap está a ir porque já olhei para outros movimentos e foi igual. Acompanhei, mais ou menos, o movimento grunge e o que está a acontecer com o rap foi com o aconteceu com eles. Começou como música de degenerados, gajos lá das montanhas, que eram reais e a coisa deles era forte e aí seguir veio o dinheiro. Com o dinheiro vêm os intelectuais e tiram-lhe o sal. Metem no açúcar, tiram-lhe o sal e a coisa com o tempo começa a perder força.

Até para dinossauros do rap aqui em Portugal, se tu olhares para a sua estrutura de fazer música, tu vês que a intenção deles é mais rimar palavras e que são mais estudiosos de rimas e de vocabulário do que propriamente utilizarem o rap para a raiz com que ele foi criado, que é dar a voz a quem não tem voz, “combater” aquilo que nos rodeia. Eu acredito no dia em que essa parte for completamente apagada — ter conteúdo e propósito –, o rap, e espero que ninguém do rock me mate por isso, segue o mesmo caminho do rock. Eu vi isso no grunge. Eu acredito que o último rei do rock foi o Cobain. Ele era a voz de uma geração. A droga, aqueles problemas todos. Vieram os “paraquedistas”, os que acham que são mais espertos, e sem se darem conta aquilo morreu. Um miúdo não se revê naquilo. Os problemas que nós temos no nosso dia-a-dia a gente não se revê em músicas a falar da Lua ou de Marte.

O rap foi um movimento que atacou a coisa a seguir e, humildade à parte, todos os reis da música a seguir foram do rap. Espero que ninguém leve a mal, mas eu acredito que, depois do Cobain, todos os reis da música foram do rap. O Tupac, o Notorious, o B-Real, o Eminem, todos os reis da música foram do rap. Porquê? Porque eram pessoas que, de certa forma, levavam a voz daquilo que nos rodeia, enquanto os outros envergaram por um caminho de beleza musical e ponto final. Eu tenho medo e acredito que provavelmente pode acontecer isso com o rap. A própria indústria obriga-te a ser vazio. 

Votaste na Joacine?

Eu não voto. Se eu pudesse votar em alguém era em Jesus Cristo. 

Sentes-te a voz de algum colectivo português? Como é que tu olhas para Portugal neste momento? Estamos melhor do que quando começaste a rimar? E a pergunta da Joacine ia ao encontro disso: demos passos na direcção que importa dar ou Portugal continua uma confusão que não se entende?

Eu, sinceramente, acredito que o mundo caminha para uma grande tribulação. Nós que estudamos a Bíblia temos noção disso, se não Deus era mentiroso. Eu vejo “todas as noivas na pista para aquilo que vem”. É uma coisa que não me assusta. O que vier, virá. E cada um, segundo a Bíblia diz, procurará as suas rochas e montanhas para se esconder. Essas rochas e montanhas significam exactamente isso: partidos políticos, associações…

Podes ser uma dessas rochas para alguém? 

Não, não. A minha rocha é Deus. Há outros que vão se refugiar em partidos políticos…

E porque não na obra de um artista como tu? 

Porque eu não posso salvar ninguém [risos]. Eu não tenho essa capacidade.